terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Atribuição para delegação do poder público para exercício da função notarial e de registro

Atribuição para delegação do poder público para exercício da função notarial e de registro
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Elaborado em 05.2003.
Ivana H. Ueda Resende
analista judiciário do TJDFT, assessora da Corregedoria-Geral da Justiça do Distrito Federal, secretária-geral da Vice-Presidência e Corregedoria Regional Eleitoral do Distrito Federal
A delegação de poder público para exercício da função notarial e de registro foi, até passado recente, objeto de divergências entre os intérpretes da legislação em vigor. Alguns ícones da Ciência do Direito, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Mello e Walter Ceneviva, chegaram a capitanear o posicionamento de que faleceria poder ao Judiciário para efetuar a delegação em tela, sobejando-se tal atribuição ao Poder Executivo, em razão do histórico legislativo pátrio.
Sem embargo das razões que balizam o entendimento citado, toda e qualquer polêmica a respeito do tema, hodiernamente, encontra-se superada pela iterativa jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça.
Os Serviços Notariais e de Registro são, pela tradição legislativa brasileira, serviços auxiliares do Poder Judiciário. Assim são consagrados na Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal e dos Territórios – Lei Federal n° 8.185, de 14 de maio de 1991, art. 67, alínea ‘c’, malgrado o fato de não figurarem nos Anexos mencionados no art. 8°, da Lei n° 8.407/92. Segue-se-lhe o disposto, no mesmo tom, no Regimento Interno do TJDFT, art. 273, inciso I, segundo o qual são atribuições do Presidente do Tribunal prover os cargos dos serviços auxiliares, na forma da Lei.
Nenhuma novidade traz a qualidade de auxiliares da Justiça atribuída aos Serviços Registrários e Notariais. Já o eminente Ministro Castro Nunes, enquanto abrilhantava a Corte Suprema, analisando a denominação de "serventuário" aplicada aos empregados das Serventias Extrajudiciais, vaticinou:
"Serventuário é a denominação tradicional, reservada a certos funcionários que trabalham juntos aos Juízes e aos tribunais; a dúvida, a respeito, provém do caráter medieval dessa investidura, pois os ofícios de justiça, séculos atrás, eram hereditários e comprados; eram, por assim dizer, bens privados, transmissíveis aos descendentes; e o direito moderno aboliu essa noção de serventuário, que passou a ser o que é em nosso direito positivo; atualmente, ele é um funcionário como outro qualquer; conservou-se a denominação de serventuário, mas na realidade, ele é funcionário; pouco importa que não receba do Tesouro e sim emolumentos fixados em lei, tanto assim que lei recente, de poucos anos atrás, estabeleceu até a aposentação, à custa do Tesouro." (citado no RE 178.236-6).
De igual maneira, não há controvérsia acerca da competência privativa dos Tribunais, atribuída constitucionalmente desde há muito, para organização dos serviços auxiliares da Justiça.
A atual Carta Magna não destoa dessa tradição e firma, de maneira categórica, nas alíneas ‘b’ e ‘c’, do inciso I, do seu art. 96, competir privativamente aos Tribunais organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva, bem como prover, por concurso público de provas, ou provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo único, os cargos necessários à administração da justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei.
Também a Constituição Federal de 1 934, em seu art. 67, tratava da matéria e o fazia em sentido idêntico.
Confira-se:
"Art. 67 - Compete aos Tribunais:
a)elaborar os seus Regimentos Internos, organizar as suas secretarias, os seus cartórios e mais serviços auxiliares, e propor ao Poder Legislativo a criação ou supressão de empregos e a fixação dos vencimentos respectivos;"
Novamente o entendimento é reiterado na Constituição de 1937, que assim sintetizou a disciplina quanto à matéria:
"Art. 93 - Compete aos Tribunais:
b)elaborar os Regimentos Internos, organizar as Secretarias, os Cartórios e mais serviços auxiliares, e propor ao Poder Legislativo a criação ou supressão de empregos e a fixação dos vencimentos respectivos;"
Em 1946, não houve novidades quanto ao tema, e o texto constitucional resultou no conteúdo seguinte:
"Art. 97 - Compete aos Tribunais:
I - eleger seus presidentes e demais órgãos de direção;
II - elaborar seus Regimentos Internos e organizar os serviços auxiliares, provendo-lhes os cargos na forma da lei; e bem assim propor ao Poder Legislativo competente a criação ou a extinção de cargos e a fixação dos respectivos vencimentos;"
A Constituição de 1967, com a alteração que lhe provocou a Emenda Constitucional n° 01/69, trouxe em seu art. 115 a normatização a seguir transcrita:
"Art. 115. Compete aos Tribunais:
I - eleger seus Presidentes e demais titulares de sua direção;
II - elaborar seus regimentos internos e organizar os serviços auxiliares, provendo-lhes os cargos na forma da lei; propor ao Poder Legislativo a criação ou a extinção de cargos e a fixação dos respectivos vencimentos;"
O retrospecto dos textos constitucionais vem reforçar o entendimento de que, ao contrário do que preconizam os doutrinadores, o poder de delegar o exercício das funções auxiliares da Justiça, a exemplo das registrária e notarial, tem sido historicamente atribuído ao Poder Judiciário.
Ademais, o imenso rol de atribuições concedidas ao Judiciário pela Lei n° 8935/94 – Lei dos Notários e Registradores – força à exegese sistemática e não literal e isolada dos dispositivos infraconstitucionais.
Extrai-se de parecer do publicista Celso Antônio Bandeira de Mello as atribuições do Judiciário no que respeita aos Serviços Notariais e de Registro, de acordo com a citada Lei n° 8.935/94:
"A teor da Lei 8.935, compete ao Poder Judiciário realizar os concursos públicos para provimento de tais serviços (art. 15) e, através do Juízo competente, fixar os dias e horários em que serão prestados os serviços notariais e de registro (art. 4°); receber o encaminhamento feito pelo titular dos nomes de seus substitutos (art. 20,§2°); resolver as dúvidas levantadas pelos interessados e que lhe serão encaminhadas pelos notários e registradores (art. 30, XIII); fixar as normas técnicas de obrigatória observância naqueles serviços (art. 30, XIV); aplicar aos notários e oficiais de registro, em caso de infrações disciplinares, assegurada ampla defesa, as penalidades previstas de repreensão, multa, suspensão e perda da delegação (art. 34 c/c 31, 32 e 33), dependendo esta última de sentença transitada em julgado ou de processo administrativo, assegurado amplo direito de defesa (art. 35), bem como, designar interventor para responder pela serventia (arts. 35,§1° e §1° do 36) quando suspendê-lo preventivamente (art. 36 e §1° do art. 36); exercer, através do juízo competente, como tal considerado aquele assim definido na órbita estadual ou distrital, a fiscalização dos atos notariais e de registro, sempre que necessário ou quando da inobservância de obrigação legal destes agentes ou seus prepostos (art. 37); remeter ao Ministério Público cópias e documentos necessários à denúncia, quando em autos ou papéis que conhecer, verificar a existência de crimes de ação pública (parágrafo único do art. 37); zelar para que os serviços notariais ou de registro sejam prestados com rapidez, qualidade satisfatória e de modo eficiente, podendo sugerir à autoridade competente planos de adequada e melhor prestação deles (art. 38); propor à autoridade competente a extinção do serviço notarial ou de registro e anexação de suas atribuições a outro da mesma natureza, quando verificada a absoluta impossibilidade de se prover por concurso público a titularidade dele, por desinteresse ou inexistência de candidatos (art. 44)" (RDI 47/203-204).
Em várias oportunidades, a Lei 8.935/94 faz menção à "autoridade competente", sem definir expressamente o detentor de tal qualidade. Entretanto, pela interpretação sistemática do diploma legal, é possível influir, com rara nitidez, que a ausência de tal definição se deu em respeito à autonomia e competência legislativa concorrente dos Estados Membros, tendo em vista que o art. 18 da Constituição Federal remete a edição de normas especiais ao poder legiferante estadual, deixando com a União apenas a competência para editar normas de caráter geral.
É de se lembrar, contrapondo-se ao veto ao art. 2° da Lei 8935/94 que previa competência expressa do Judiciário para a delegação em foco, que a Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal, em razão do que determina a Constituição da República, é lei federal e que suas disposições afetas aos serviços auxiliares e às atribuições para delegação não foram objeto de veto pelo Executivo Federal.
O Egrégio Superior Tribunal de Justiça deu interpretação de altíssimo quilate à temática ora versada.
Transcrevo trecho do voto da lavra do eminente Ministro José Arnaldo da Fonseca, segundo quem "desde a declaração de vaga, designação de substituto, suspensão e perda de delegação, designação de interventor e remoção estão a cargo do órgão judiciário respectivo.".
Prossegue o ilustrado Ministro:
"Veja-se que, nesses dispositivos(menção aos arts. 16, 18, 20, 35, 36 e 39, com seus respectivos incisos e parágrafos, da Lei 8935/94), há sempre menção à cláusula autoridade competente, sem nomeá-la.
Todavia, no §2°, do art. 39, transcrito, o legislador federal expressa: ‘Extinta a delegação a notário ou a oficial de registro, a autoridade competente declarará vago o respectivo serviço, designará o substituto mais antigo para responder pelo expediente e abrirá concurso.’. Ora, pelo art. 15, quem abre e realiza concurso é o Poder Judiciário. Logo, está subentendido que autoridade competente contida no texto legal é o Poder Judiciário." (in ROMS 10.280).
De exacerbada lógica a exegese conferida ao diploma legal em comento pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista que praticamente todos os atos relativos aos Serviços Extrajudiciais são praticados privativamente pelo Poder Judiciário, afigurando-se discrepante atribuir, apenas e tão somente, o poder de delegação ao Executivo.
Nestes termos é, ainda, o posicionamento do em. Ministro José Arnaldo da Fonseca, no bojo do voto transcrito:
"A Constituição Federal, no citado art. 236, não declina o destinatário do poder de delegação: se é o Executivo ou o Judiciário. Despicienda, todavia, nos parece a necessidade de vir positivada expressamente a designação, por implícita na competência do Poder Judiciário, não só pelo que dimana do art. 96, da Carta Magna, como também pelo que traduz a Lei 8935/94.
Neste contexto, cabe ao julgador proceder à interpretação sistemática do direito para determinar o conteúdo normativo das disposições legais em cotejo.
O eminente Prof. gaúcho Juarez Freitas, a propósito, preleciona:
‘De outra parte, forçoso é se conceber a imprescindibilidade inafastável coerência lógica mínima do ordenamento jurídico, de tal maneira a dele se procurar ter, sem abstrações excessivas, uma percepção conceitual harmônica no que tange a princípios, normas e valores, no fazê-los ora complementares, ora relativos, ora mútua e parcialmente excludentes, mas, sem todos os casos, pondo-os em consonância, não com as mutações históricas, senão que também com os imperativos de coerência e de unidade, que demandam ser resolvidas as contradições ínsitas ao sistema jurídico.’".
Finalizando, assevera com firmeza o Ministro que "um serviço vinculado ao Judiciário não pode ter o respectivo titular investido nas funções por ato do Chefe do Executivo, destoando de todo o sistema da organização dos serviços auxiliares do Poder Judiciário.".
Também sob o enfoque da interpretação sistemática e lógica do ordenamento jurídico, o eminente Ministro Hamilton Carvalhido pontifica:
"A toda evidência, a competência para a declaração de vacância do cargo, designação de substituto e abertura de concurso, expressamente atribuída ao Poder Judiciário pelos artigos 15 e 39 da Lei Federal que regulamentou o art. 236 da Constituição da República, pressupõe, necessariamente, por um imperativo lógico, a atribuição a esse mesmo Poder Judiciário da competência para a delegação dos serviços notariais e de registro..." (in RMS 10780).
Não são isolados os posicionamentos transcritos. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consoante já afiançado, encontra-se pacificada quanto à interpretação desta questão no âmbito da Lei Federal 8935/94.
Cite-se, ilustrativamente, algumas ementas:
"CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVENTUÁRIO EXTRAJUDICIAL. DECISÃO QUE TORNOU SEM EFEITO O ATO DE EFETIVAÇÃO. COMPETÊNCIA. LEI Nº 8.953/94. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. INEXISTÊNCIA. - A Lei Federal nº 8.935, ao regulamentar o artigo 236, da CF/88, assegurou ao Poder Judiciário a competência para realizar e fiscalizar os concursos para provimento de cargos de notários e de registros, bem como para declarar a vacância de cargo e designar o substituto, atribuindo-lhe, de conseqüência lógica, a atribuição para realizar as delegações das serventias extrajudiciais. - Declarada pelo Pretório Excelso, em sede de ação direta, a inconstitucionalidade do artigo 14, do ADCT, da Constituição do Estado de Santa Catarina, bem como suspensa a eficácia do artigo único, da Emenda Constitucional nº 10/96, dispositivos em que se fundam a pretensão deduzida no mandamus, perde vitalidade a alegação de que o ato do Presidente do Tribunal de Justiça Estadual, tornando sem efeito a efetivação de serventuário extrajudicial, teria violado direito líquido e certo. - Recurso ordinário desprovido." (in RMS 10.647. Rel. em. Min. Vicente Leal).
Sucessivos ao julgamento do aresto cuja ementa foi transcrita, estão: Recursos Ordinários em Mandado de Segurança números 10723, 10707, 10531, 10524, 10522, 10412, 10385, 10383, 10375, 10294, 10286, 10282 e 10805 – todos tendo como Relator o eminente Ministro Vicente Leal.
"RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. OFICIAL/TABELIÃO DE CARTÓRIO. NOMEAÇÃO COM SUPORTE EM DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL ESTADUAL (ART. 14) DECLARADO INCONSTITUCIONAL. LEGALIDADE DA NULIDADE DA EFETIVAÇÃO. COMPETÊNCIA DA AUTORIDADE QUE DETERMINOU A PRÁTICA DO ATO. LEI COMPLEMENTAR N° 183/99. EFEITO RETROOPERANTE. IMPOSSIBILIDADE.
A despeito da Lei n° 8935/94, bem como da Lei Complementar n° 183/99, que não tem o condão de ser dotada de efeito retrooperante, o Presidente do Tribunal de Justiça é autoridade competente para a prática do referido ato de nulidade de nomeação, tendo em conta que um serviço vinculado ao judiciário não pode ter o respectivo titular investido nas funções por ato do Chefe do Executivo..." (ROMS 10.280. Rel. em. Min. Hamilton Carvalhido).
Com tais considerações, sob os auspícios da Constituição Federal, da Lei n° 8.935/94 e da iterativa jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, a atribuição para a delegação do exercício das funções notariais e de registro é afeta aos Presidentes dos Tribunais de Justiça.

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